Os jornais mentem! - Sobre "Notícias populares" de Tatiana Bicalho

07 de junho de 2018 - Flávia Péret

Outro dia, estava em uma dessas farmácias de bairro com meu filho de três anos. Ele tinha decidido cheirar todos os sabonetes disponíveis na prateleira de sabonetes. Respirei fundo, lembrando-me (como faço diariamente) que o tempo das crianças não é o tempo dos adultos, e decidi esperar o término daquela investigação olfativa. Meio sem intenção, comecei a escutar a conversa entre o funcionário da farmácia e uma senhora. O homem disse: os jornais mentem! A mulher respondeu, com delicadeza e sem ironia: não é que eles mentem, eles não mentem, eles apenas escondem algumas informações. Eles estavam conversando sobre a greve dos caminhoneiros, parecia.

Essa frase “os jornais mentem”, vinda de um homem com quem converso apenas sobre o preço do soro fisiológico ou a diferença entre a dipirona sódica e o paracetamol me chamou atenção. Não é mentira que os jornais mentem. Os jornais mentem o tempo todo. No século 19, o escritor francês Honoré de Balzac escreveu um livro chamado Ilusões Perdidas onde descrevia como os jornais – desde aquela época – desenvolveram poderosas ferramentas de produção de mentiras ou de simulação de verdades. Ao longo dos últimos 200 anos, os proprietários dos jornais nunca se deixaram abater por esse tipo de crítica e seguem produzindo mentiras ou falsas verdades a torto e à direita, recusando-se a admitir que todo texto é uma ficção.

Eu adoro a ficção e não porque a ficção não seja verdadeira, mas porque a ficção é um modo mais complexo, profundo e intenso de produzir as possíveis versões dos acontecimentos. A poeta russa Marina Tsvetàeva escreveu que a ficção “é uma verdade sem respostas”. A escritora italiana Elena Ferrante escreveu que a ficção, com sua liberdade e autonomia, consegue se aproximar das emoções e sentimentos humanos com mais honestidade que outros gêneros textuais. O escritor argentino Juan Jose Saer explica que não se escreve ficção para iludir, mas sim para evidenciar o caráter complexo de uma determinada situação.

Os jornais do mundo todo estão repletos de histórias de vingança e de cobiça, de traição e de amor, de superação e de covardia, de morte e de renascimento, mas poucas notícias de jornal conseguem revelar a complexidade dos sentimentos e das ações dos seres humanos. Isso acontece porque o jornalismo não consegue lidar com uma informação primária: somos ambíguos e contraditórios, somos mutantes como já dizia Rita Lee. Por isso, penso que a grande fraude que o jornalismo cria não é esconder a verdade, mas vender a ilusão de que existe de um lado a verdade e do outro lado a mentira. Ao contrário dos jornais e contra essa dicotomia, gosto de pensar que tudo pode ser ficção, inclusive um poema.

Notícias Populares é um jornal ficcional. Um jornal feito de poemas, além de outros textos sem gênero definido. Mas o formato desse jornal é o livro (matriz de sensibilidade) e sua matéria prima são os assuntos absurdos, violentos, improváveis, banais e insólitos que povoam os periódicos e também as revistas de fofoca. É uma ficção sobre como a vida é muito mais interessante, intensa, cruel, trágica, sensacionalista, cômica que a própria ficção. Tatiana Bicalho não está preocupada – pelo menos não explicitamente – em fazer uma crítica aos meios de comunicação. Ao invés de analisar o discurso jornalístico naquilo que ele tem de ideológico, moral ou normativo, a poeta se apropria desse modo de escrever para implodi-lo a partir das suas entranhas.

Em Notícias Populares, observo esses dois procedimentos: o corte e a repetição, mas também o contágio de certas palavras (e imagens e ritmos e sonoridades) com palavras que a priori não são palavras poéticas, mas que nesse processo de deslocamento e desvio e pelo trabalho de montagem que é próprio da poesia tornam-se poemas. Tatiana Bicalho também leva à risca alguns dos princípios da escrita não-criativa: a idéia de reciclar a linguagem é política e ecologicamente sustentável, reutilizar e recondicionar em vez de fabricar e consumir o novo, escreveu Kenneth Goldsmith.

Notícias Populares é um livro delicioso, inteligente, engraçado, politicamente incorreto – mas como não ser politicamente incorreto quando o procedimento que organiza o livro é justamente imitar e mimetizar o discurso jornalístico? É um livro que nos faz rir. Rimos da insensatez que transforma uma ida do cantor Chico Buarque ao supermercado em um acontecimento jornalístico:

Cotidiano

maria júlia afirma estar feliz “estou feliz”

chico escolhe verduras em uma banca de verduras.

homem foi visto com um brócolis na mão e o dinheiro na outra.

suzana é vista atravessando a rua enquanto chovia.

ela estava sem sombrinha e com cabelo impecável.

caetano é fotografado no leblon. irritado, ele diz: não enche.

gente como a gente, laurinha conta: limpo a bunda todos os dias.

cristine é vista com dedo no nariz durante passeio no shopping.

Ou de como é a vida de Suellen (filha de uma celebridade brasileira) em Nova York. Suellen é um dos meus poemas preferidos, aliás, o considero uma obra prima da poesia contemporânea brasileira. Destaco aqui um trecho:

suellen leva uma vida de


princesa
em nova York na big apple,
big Apple
filha de uma rainha, sem
trono sem reino
sem cetro e com algum
séquito
suellen transita por lugares
descolados e
sofisticados
é habitué de lojas
fashionistas e bairristas
suellen é estudante de
moda, resolve sua
vida a pé na área da union
square
suellen mora com uma
amiga com
quem divide a despesa, o

auau


e o rooftop que em
português
significa terraço, que é
o lugar favorito da mocinha
para fazer brincadeirinhas e
brincar com a cachorrinha
que divide com
a amiga, a despesa, o
rooftop e o
auau

Ao satirizar essa sanha pela informação e a curiosidade dos leitores, Notícias Populares me faz pensar em tantos acontecimentos importantes que continuam sendo invisíveis e como, em nosso país sempre temos essa sensação de que alguma coisa (ou muitos, ou todas) está fora da ordem. Rimos com gosto, com a boca cheia, mas quando paramos para refletir com um pouco mais de cuidado, o que fica na boca é “um sorriso/meio torto, meio amarelo” como o sorriso de Doronildes.

doronildes, dona de casa


meia idade meio ciumenta
matou o marido, um PM
meio aposentado, meio encostado
com golpes certeiros de amor
na cama
com linho e fel
não se conformava com as ausências matrimoniais
ela foi parar em cana
não tinha remorsos
apenas dois dentes e
um sorriso
meio torto, meio amarelo

Conheço Tatiana Bicalho há algum tempo. Tenho a alegria e o privilégio de acompanhar seu processo de escrita e as histórias (e estratégias e angústias) por trás dos seus poemas. Sempre me chamou atenção a habilidade com que ela constrói textos curtos e fortes, que tem na concisão uma característica importante, conectando a exatidão das imagens (seus textos são sempre muito visuais) com uma tensão psicológica ao mesmo tempo sutil e irônica. Talvez essa habilidade Tatiana não tenha aprendido com a escrita, mas com a fotografia (ela é também artista visual e fotógrafa e durante algum tempo pesquisou e produziu livros de artista).

Notícias Populares será lançado no próximo sábado, dia 9 de junho, na Feira Textura – rua Esmeralda, 298, Prado. O livro foi publicado pela editora Impressões de Minas e é o livro de estreia de Tatiana Bicalho.

Notas:

1 - Quem disse que os livros são matrizes de sensibilidade foi o Júlio Plaza, no texto “O livro como forma de arte” e está disponível aqui.

2 – O texto integral do poeta norte-americano Kenneth Goldsmith, criador do termo escrita não criativa, pode ser lido no PDF da revista Grampo Canoa, número 2, da editora LunaPARQUE e está disponível aqui:

3 – Alguma coisa está fora da ordem é uma frase do Caetano Veloso eu acho que todo mundo sabe disso, né!

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Flávia Péret é escritora e professora no Estratégias Narrativas. Seu curso Escrita não-criativa está com inscrições abertas, e tem tudo a ver com o que ela escreve aqui. (foto: Bianca de Sá)

Flávia Péret é escritora e professora de literatura. É mestre em Estudos Literários pela UFMG, estudou Literatura Latino-americana na Universidade de Buenos Aires (UBA) e é mestranda em Educação na UFMG, com uma pesquisa sobre escrita e formas políticas de resistência. Participou do programa Rumos de Literatura, na categoria Crítica Literária (2010/2011), promovido pelo Itaú Cultural e foi vencedora do Prêmio Folha Memória – Programa de Orientação de Pesquisa em História do Jornalismo Brasileiro, organizado pelo jornal Folha de São Paulo (2010). Publicou os livros História da Imprensa Gay no Brasil (Publifolha, 2011), 10 Poemas de Amor e de Susto(Edição independente, 2013), A outra noite (Edição independente, 2015) e Uma mulher (Edição independente+Guayabo, 2017). Seu próximo livro, Os patos, está no prelo e sairá pelo Selo Leme em colaboração com o Estúdio Guayabo. Desde 2009, atua como arte-educadora no campo da palavra e suas interseções com a imagem. (foto: Bianca de Sá)