O que li n°2 (janeiro, 2020)

27 de janeiro de 2020 - Laura Cohen

Li demais, fiquei remelenta e não vi nenhum filme.

ROMANCES

Torto arado – Itamar Vieira Júnior. Ed. Todavia.

Admito que só comprei esse livro
porque achei a capa bonita (quem nunca). O nome do autor me pareceu familiar, mas só lembrei quem era depois: ele era meu amigo de facebook e a Adriane Garcia já tinha me recomendado um livro de contos dele (que juro que vou ler depois dessa porrada do Torto arado). Agora vou escrever em caixa alta
mesmo para ficar claro que estou gritando: SE ESSE LIVRO NÃO GANHAR ALGUM PRÊMIO VOU FICAR MUITO BRAVA. Livrasso do caramba. Aliás, acho que é o livro que a história do Brasil estava precisando. Eu tive a sensação de que eu deveria ter lido esse livro enquanto eu estava no ensino médio. Que os meus pais deveriam ter lido esse livro enquanto eles estavam no ensino médio.

Estou pouco a fim de falar sobre o que ele (leia esse livro sem saber nada sobre ele, vale a pena a surpresa), mas talvez eu devesse falar mais da minha experiência de leitura: no começo, achei a história um pouco lenta, e um lento-bonito, um lento-bom, quase repetitivo – se você estiver achando que está devagar demais,
INSISTA. Há um pequeno problema editorial: algumas informações se repetem,
valia mais atenção de quem preparou os originais... Na segunda parte, já amei
de paixão, é fluido sem frescura. E quando cheguei na terceira parte, meus
amigos, é de cair o cu da bunda a surpresa que nós temos. Absolutamente genial,
como se os estilos do William Faulkner e do Graciliano Ramos tivessem tido um
filho. Vida longa, Itamar.



Não vai ter trecho desse porque já emprestei.





Querida Konbini – Sayaka Murata. Ed. Estação Liberdade.


Ouvi falar desse livro em um
podcast e foi uma boa leitura para depois do Torto arado: leve sem ser
idiota, crítico sem ser doloroso demais. E delicioso. É uma história muito
simples de uma mulher que trabalha em uma loja de conveniência japonesa, a konbini,
um emprego que é apenas um bico para a maioria dos japoneses que o exercem. No
caso, essa mulher está na konbini há dezoito anos, o que parece uma
anormalidade para as pessoas que a cercam. Entretanto, essa mulher ama a
konbini para a qual ela trabalha, e esse trabalho é sua razão de viver: ela não
se relaciona, não tem amigos, não se encaixa em nenhum outro lugar que não a
konbini. Um livro sobre os limites do normal nas sociedades e sobre como
pessoas fora do padrão podem incomodar nosso fundado senso de ordenação da vida.
Profundamente feminista, tragicamente engraçado e sabiamente musical.



Trechim: “Pelo que eu observo, há
no mundo dois tipos de pessoas preconceituosas: as que têm dentro de si o
impulso e o desejo de discriminar e as que apenas papagaiam, em segunda mão, os
discursos preconceituosos que ouviram em algum lugar”.





Sobre os ossos dos mortos
– Olga Tokarczuk



Sou vegetariana, portanto estava
com medo de ler um livro com um coelhinho rosa decapitado sangrando na capa. Mas
muita gente me disse para ler esse livro, tanto que acabei pegando emprestado de
um amigo. A narrativa me fisgou desde o começo: no meio de um inverno rigoroso
em um pequeno vilarejo na Polônia, acontece uma morte inesperada de um dos
poucos vizinhos da narradora. Essa narradora, para mim, é o elemento mais
interessante do livro: uma mulher já idosa, que pratica astrologia, cria afeto
pelos bichos (odiando, assim, os caçadores — que todos os leitores também hão de
odiar!), traduz William Blake com um amigo e gosta de dar apelidos (ela
chama de dar “os nomes corretos”) para as pessoas. Achei muito, muito bom até
os dois últimos capítulos: o livro, quando poderia deixar um final em aberto,
mais enigmático, opta por um desfecho previsível e quebra certas
analogias/alegorias do mal humano que estava construindo. Me lembrou um pouco a
experiência de leitura do Dostoiévski, que algumas vezes se estrepa no fim. No
entanto, é uma aula de construção de personagem. Há uma passagem em que a
narradora descreve um carteiro que é primorosa, e que provavelmente usarei em
oficinas de personagens mais para frente. Em suma, o livro é maravilhoso até o
antepenúltimo capítulo. Depois, pareceu com pressa para terminar, como se Olga
Tokarczuk tivesse que pagar uma dívida de jogo com sua publicação...



Um trecho: “— E
aí, como é viver numa torre de marfim, acima das cabeças dos meros mortais, com
o nariz nas estrelas? — perguntou.



Não suporto isso nas pessoas — essa
ironia fria. É uma postura muito covarde; tudo pode ser ridicularizado,
desrespeitado, não é preciso se envolver em nada ou estabelecer qualquer laço.
Como um homem impotente que não consegue sentir prazer, mas fará de tudo para
estragar o prazer dos outros”.



MEMÓRIAS




Afetos Ferozes – Vivian
Gornick. Ed. Todavia.



Eu odiei a capa e o título desse
livro, mas acabei comprando porque o José Eduardo Gonçalves mandou — e
normalmente ele acerta ao me indicar livros. É bem simples: Gornick fala de sua
infância em um prédio cheio de famílias judias, como a dela, em Nova Iorque,
alternado com o tempo presente (no caso, anos oitenta, quando o livro foi
escrito), quando ela fazia caminhadas na rua com sua mãe já idosa. E Gornick
vai crescendo enquanto sua mãe vai envelhecendo, até que finalmente essas duas
narrativas se encontram. O conflito, por sua vez, jamais cessa. A franqueza
como ela escreve tudo, tudo, tudo — informações profundas, que talvez só
partilhemos com nossos terapeutas, ou, quem sabe, com desconhecidos — é
o mais impressionante nessa história. Demorei a engatar um pouco a leitura, mas
quando o livro me pegou, pegou; fui embora, depois fiquei economizando as cinco
últimas páginas para não acabar. É sobre ser mulher e ter uma mãe. Bom para
quem está se debatendo com os temas da maternidade real.



Para vocês: “Agora eu sou o
repositório da sua vida, mãe”.





O ano do macaco – Patti
Smith. Ed. Cia. das Letras.



2016 não foi um ano fácil para
Patti Smith (para quem foi???), mas pelo menos ela escreveu esse livro lindo
para nós. Das coisas dela que li, foi o que mais gostei, talvez porque seja uma
mistura perfeita entre o sonho, o acontecimento e a voracidade temporal: prosa
e poesia. Em viagens pelos EUA e voltas para casa, misturadas a sonhos e
delírios fantásticos (por exemplo: a conversa entre Patti e a placa de um
hotel), Smith conta sobre o ano em que ela fez setenta anos, ano do macaco para
os chineses, ano em que Trump foi eleito, ano em que algumas pessoas que ela
amava adoeceram gravemente.



Acho que acaba sendo um livro
sobre o tempo, pois: “Mesmo que seja provável um princípio finito relacionado à
velocidade com que a areia passa através de uma ampulheta, não há vantagem em
ter um vidro imponente ou grãos mais perfeitos”.



TEATRO




Litoral – Wajdi Mouawad. Ed.
Javali (coleção traduções)



Eu tenho uns planos de leitura
que não são necessariamente metas ou desafios — talvez desejos literários. E
meu desejo para 2020 é ler mais editoras de BH e ler mais teatro. Na última
textura, lá estava Luciana Campos belíssima vendendo o livro novo do Wajdi
Mouawad. Para quem não conhece, ele escreveu a peça que inspirou o filme Incêndios,
dirigido pelo Denis Villeneuve, que é um dos meus filmes preferidos da vida. Litoral
fala sobre Wilfrid, um homem que perde o pai e deve levar seu corpo para sua
cidade natal, que está em guerra. O texto é chocante pela sua violência, houve
várias partes em que quase larguei o livro porque achei que não ia aguentar
mais cenas asquerosas e assustadoras. É uma leitura desconfortável e, na real,
não sei se gostei muito de ler esse livro. Será por que eu ainda não estou
muito acostumada a ler teatro? Ou será que é porque o texto é dolorido demais? A coisa ruim dessa leitura: fiquei esperando
por uma grande catarse, como acontece em Incêndios, achei o texto muito
longo e repetitivo, tem uns recitativos meio esquisitos no final, poderia ter
tido alguns cortes e algumas coisas precisavam de ser amarradas e de fato não
foram. A peça foi encenada há uns anos, e acho uma pena eu ter perdido essa...
Adoraria ver como funcionou no palco. A edição da Javali está, como sempre,
impecável.



Trecho: “Quando se morre, já não se sabe de nada, Wilfrid. Já viu um cachorro sendo arrastado por um maremoto? Quando se morre, você vira um cachorro, com olhos de cachorro, totalmente só, no meio de uma imensa onda que nos arrasta mar adentro. Mar adentro é terrível, não há mais nada do que o horizonte, então você se caga e se mija todo porque não há mais nada a fazer ser não se mijar e cagar, como o último gesto de vida, um último gesto para deixar uma pista antes de partir”.



QUADRINHOS




Você é a minha mãe? – Alison Bechdel. Quadrinhos da Cia.



Não tão fácil de ler quanto Fun Home (que li mês passado), esse livro é mais longo, mais teórico e mais complicado. Entre a narrativa de diversos sonhos, sessões de análise, memórias, conversas telefônicas, processos criativos e relacionamentos, Bechdel mistura psicanálise, quadrinhos e literatura para dessa vez contar a história com sua mãe, ainda mais complexa do que a relação com o pai. Foi interessante ler esse livro junto do livro da Gornick, sobre o qual escrevi acima. De alguma forma, essa leitura foi tão reveladora, dolorosa, afetuosa para mim como pessoa que eu não sei se me sinto muito confortável para falar dele, ou até mesmo muito pronta para falar dele. Uma sensação parecida de quando li A filha perdida da Elena Ferrante, meu livro favorito da autora: uma compreensão das nossas mães e, por isso, uma compreensão da vida como um todo. Dê para sua mãe de presente depois de ler.


Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)