Eu um outro

01 de dezembro de 2015

Por Laura Cohen

Semana passada uma aluna foi ao ateliê com uma aflição muito grande e muito comum. Ela me disse que só escrevia a respeito de si mesma, e que estava de saco cheio de si. A minha sugestão não poderia ser mais simples e deliciosa – invente personagens!

Os personagens são o meu assunto preferido quando se trata de ficção. Tem uma entrada do diário da Sylvia Plath que diz assim:

“Amo as pessoas. Todas elas. Amo-as, creio, como um colecionador de selos ama a sua coleção. Cada história, cada incidente, cada fragmento de conversa é matéria-prima para mim”. *

Acho que criar personagens é um exercício de observação do outro e um exercício de obsessão com relação ao outro – ser um pouco espião, um pouco detetive de vidas alheias. Entretanto, acredito que cada personagem que eu invento tem uma característica minha, simplesmente porque eu acho impossível escrever sobre um outro além de si sem falar de si mesmo.

Por exemplo: eu queria escrever sob a voz e a visão de uma menina de dezessete anos em alguns capítulos do livro novo no qual estou trabalhando. A primeira coisa que eu fiz foi dar um nome a ela. É uma espécie de obsessão: para existirem como gente, os meus personagens precisam ter um nome – ao dar um nome a eles, me sinto mais próxima, sinto uma espécie de poder sobre eles.

A segunda coisa que fiz foi tentar dar uma voz a ela: como ela mesma narra alguns capítulos da história, fiquei pensando e trabalhando em uma fala ingênua, uma fala que está descobrindo que o mundo não é tão certinho como os adultos dizem ser – na verdade as coisas são bastante estragadas.

A terceira coisa que fiz (e talvez a mais importante de todas) foi tentar recordar as coisas a respeito de mim mesma com dezessete anos. Escolhi algumas cenas que aconteceram comigo: uma excursão da escola até o campus universitário numa mostra de profissões, o fato de eu detestar com todas as minhas forças o uniforme da escola, os estudos pesados do terceiro ano, um tédio profundo, uma impaciência. Eram coisas minhas, mas acho que são coisas possíveis a quem foi adolescente um dia (nas mesmas condições sociais que eu, obviamente). É preciso sentir o que o personagem sente, mudar de pele, criar empatia e, muitas vezes, antipatia.

Ao mesmo tempo, tive a sorte de ter material de pesquisa disponível: moro do lado de alguns colégios, e bem ao lado de um museu visitado diariamente por estudantes, então eu tenho material à vontade. A pesquisa acaba sendo um tipo de musa: todos os dias, quando estou saindo de casa, trombo com um sem número de meninas na faixa de idade da personagem que estou criando. Elas normalmente têm uma expressão muito especifica no rosto – um olhar meio irônico, cheio de desconfiança, um olhar superior. Eu olho para elas e penso: está aí, ela, diante dos meus olhos.

Mas acho que não basta criar o personagem – o personagem está sempre atrelado a acontecimentos e desejos, então ele existe dentro de algum contexto de crise. Daí cada personagem tem a sua tragédia pessoal, algo que ele quer ou algo que ele não deseja que aconteça com ele de jeito nenhum. Então, mesmo achando que não existe fórmula para escrever além de entender o próprio estilo e desenvolvê-lo, penso que o método de criar personagens é simples e contínuo, é preciso observar bastante as pessoas, guardar as palavras delas e entender os desejos delas. A ideia é justamente tirar de si o que há em muita gente e colocar naquele corpo ficcional específico, junto com as coisas que a gente tira do mundo. Do processo sai o maior triunfo – falar de alguém que não existe como se a pessoa existisse de verdade.

* Os diários de Sylvia Plath; 1950-1962. Editado por Karen V. Kukil, tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Globo, 2004.