As fases da escrita: mimetismos de amor

11 de agosto de 2016

[por Flávia Péret*]

Com a série Minha luta, até o momento composta pelos livros A morte do Pai, Um outro Amor, A ilha da Infância e Uma temporada no escuro (todos publicados pela Companhia das Letras, todos com mais de 400 páginas), o escritor norueguês Karl Ove Knausgård executa um projeto literário ambicioso: escrever sobre tudo que acontece na vida dele. O nascimento da primeira filha, o cardápio da festa do batizado, as conversas com os amigos, a rotina de cuidados da casa e dos filhos pequenos, as brigas com o pai, as brigas com a mulher, reflexões sobre os textos que lê, reflexões sobre os textos que escreve. Ele pode “gastar” 10 páginas narrando, detalhadamente, a faxina que faz na casa da avó, descrevendo os produtos de limpeza que usa e como tira as manchas do espelho de forma que, em nenhum momento, o texto fica chato. As digressões são gigantescas, mas os assuntos se encaixam perfeitamente. O último parágrafo de Um Outro Amor é uma das coisas mais bonitas que já li. No entanto, enquanto lemos, somos conduzidos por uma narrativa transparente. Os efeitos, o estilo, a técnica desaparecem e o que apreendemos é a história da vida desse homem de 47 anos.

Ler Karl Ove Knausgård me faz ter vontade de escrever sobre a minha vida de um jeito que eu nunca escrevi. Eu sempre escrevo sobre a minha vida, mas sempre com um olhar oblíquo e sintético, ressaltando os aspectos mais sombrios (aquilo que não entendo bem) ou sobre os mais sórdidos (aquilo que me envergonha). Trocando em miúdos: sou uma escritora cristã cheia de culpa que usa a escrita como expiação, pero no mucho...

Quando escrevo sobre minha vida, o que está sob perspectiva é o pólo negativo da existência, minhas vulnerabilidades e meus problemas. Nunca escrevo sobre momentos felizes, nunca escrevo sobre o amor (apesar de só escrever sobre relações amorosas). Tive um parto feliz e pleno (nunca usei esta palavra antes), mas não tenho vontade de escrever sobre ele. No entanto, tenho vontade de escrever sobre o pânico que tomou conta do meu corpo depois que Joaquim chegou em casa. É como se na escrita (e a partir dela) eu pudesse praticar a melancolia – esse meu modo nunca soberano, mas implícito de ser.

Me parece que o texto Knausgård também acredita que a escrita é um exercício de introspecção rumo ao pensamento melancólico. Eu não conheço acesso mais vertical ao pensamento do que o ato de escrever – pensamento que também é dúvida e desmaterialização. Mas o material dele é mais vasto. É a vida dele (íntima, atormentada, confusa), mas dezenas de outras coisas que continuam sendo a vida dele (os outros na vida dele, os filhos, os amigos, os parentes, o trabalho...), mas que não são exclusivamente o mundo interior dele. Ele amplia o campo de visão e escreve sobre tudo e sobre qualquer coisa.

É claro que muitos escritores já fizeram isso. Mas a literatura contemporânea é marcada por um excesso de fragmentação. Eu, por exemplo, escrevo por subtração de informação. Escrevo pouco, as frases são curtas, os parágrafos são pequenos, as entrelinhas gigantes. É, neste sentido, que Kaunasgard me inspira. Queria aprender a alongar as frases.

Sempre escrevi por aproximação. Sempre escrevi querendo dialogar com os escritores que admiro e não há nenhum problema nisso. Já mimetizei Ana Cristina César (quem não?), Hilda Hilst, Adília Lopes, Alejandra Pizarnik, Arnaldo Antunes, Rubem Fonseca (meu primeiro amor). Tenho planos de mimetizar Alejandro Zambra e Elvira Vigna.

O mimetismo é uma forma legítima de amor. Nesta fase da minha vida, queria me apropriar desse fôlego, dessa concentração. Em outros momentos, quis apenas escrever bonito. Agora, isso não me interessa mais.

* Flávia Péret é escritora e professora de literatura. É mestre em Estudos Literários pela UFMG e estudou Literatura Latino-americana na Universidade de Buenos Aires (UBA). Participou do programa Rumos de Literatura, na categoria Crítica Literária (2010/2011), promovido pelo Itaú Cultural e foi vencedora do Prêmio Folha Memória – Programa de Orientação de Pesquisa em História do Jornalismo Brasileiro, organizado pelo jornal Folha de São Paulo (2010).Publicou os livros História da Imprensa Gay no Brasil (Publifolha, 2011) e 10 Poemas de Amor e de Susto (Edição independente, 2013). Desde 2009, atua como arte-educadora no campo da palavra e suas interseções com a imagem. Atualmente, é professora de literatura e linguagem na Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia de BH.