A escrita como modo de ir

03 de janeiro de 2017 - Laura Cohen

[Por Laura Cohen]

Uma das coisas mais bonitas do meu 2016 foi a participação do amigo escritor Carlos de Brito e Mello nos Ciclos de convivência literária. Respondendo uma pergunta sobre o livro Vermelho Amargo do Bartolomeu Campos de Queirós, ele (não vou me lembrar perfeitamente bem de como foi porque me emocionei muito na hora) disse que era necessário reivindicar a linguagem, apoderar-se dela, pois pessoas em posição de poder já estão ocupando o lugar da linguagem de modo despótico. Linguagem, todos sabemos, é um poder. Poder falar é um poder, não poder falar é impotência. Fiquei com aquilo na cabeça: reivindicar a linguagem. Tornar a palavra nossa de novo. Apoderar-se dela.

Aqui em Belo Horizonte, não conheço nenhum escritor ou escritora que seja exclusivamente escritor e acho que isso diz muito sobre o ofício da escrita. Escritores-psicanalistas, escritores-professores, escritores-engenheiros, escritores-pintores, escritores-médicos, escritores-bombeiros (não conheço, mas bem que gostaria) têm dupla função, não só porque o ofício da escrita não rende sustento econômico no Brasil, infelizmente, mas também, acredito, por uma necessidade de respiro de um trabalho ao outro. A escrita pode ser uma vida paralela porque a escrita acaba sendo um ofício meio selvagem, que acontece em condições específicas e diferentes para cada um de nós. Mas também há o contrário: várias pessoas que têm outra profissão ou vivência também fazem uso da escrita, reivindicam a linguagem para contar uma história, partilhar informação, fazer ficção, trabalhar acontecimentos. Estas pessoas não precisam ser necessariamente escritoras, nem precisam escrever um livro, mas por algum motivo, perceberam que tinham algo – ficcional ou factual – que chamava à escrita e botaram as mãos nas palavras. Gosto de pensar que todos podem, se quiserem.

Em 2016 também tive o prazer de editar textos escritos desenhista Binho Barreto, que não é escritor, mas escreve. Escreve porque quis, porque pode, porque é legal. O Binho vive do desenho, do grafite à sala de aula, e oferece uma oficina brilhante (que espero poder fazer e receber aqui no ateliê), chamada Desenho para não desenhistas. Ele descreve a oficina assim:


“A oficina parte de uma constatação de que existe uma lacuna na educação ‘formal’ (fora das escolas de arte e afins) quanto ao ensino do desenho. Ele é importante como expressão artística, mas também como uma forma de organizar ideias e comunicar visualmente/espacialmente. Deveria ser uma habilidade desenvolvida para o uso cotidiano como a língua portuguesa e a matemática: todos têm direito e conseguem. A diferença é que no processo de aprendizado existe uma cobrança e um mito sobre o desenho que geram bloqueios. Ninguém compara quem aprende matemática para o uso cotidiano com um Albert Einstein ou alguém que aprende língua portuguesa com um Machado de Assis. No entanto, todos que passam pela escola aprendem a usar essas duas habilidades cotidianamente”


Eu mesma estudei desenho por seis anos. Desenhar é um modo de pensamento, às vezes até um modo de solucionar problemas, para mim. Quando li isso e conversei com o Binho sobre o assunto, fiquei sentindo que a mesma coisa acontece com a escrita de ficção, com a escrita da poesia e muitas vezes pela escrita de qualquer coisa. As pessoas acham que não podem. Para escrever ficção ou poesia, parece não existir um “uso cotidiano”: ou você é escritor ou não é. Há uma pressão bem ruim em torno da escrita e há sempre uma intensa vergonha generalizada em ser uma pessoa que, em determinados momentos, deseja escrever. Experiência própria – durante toda minha adolescência, sempre tive medo de dizer aos outros que eu escrevia histórias e esse hábito (agora profissão, né, querides) foi bem desencorajado por alguns professores. Medos de tempo de escola são frequentes por aqui nos alunos do ateliê: não pode usar esse verbo assim, a palavra tal se escreve de tal jeito, não pode errar ortografia, que letra ruim. Além de tudo, existe uma intimidade na escrita, quando partilhamos algo que aconteceu ou poderia ter acontecido, que nos dá medo ou embaraço. Sempre uma sensação: o que as pessoas vão pensar de mim?

Muita gente deseja e precisa (eu, por exemplo, preciso) da escrita para viver, e por implicações do achar que não pode ou autocensuras, acaba perdendo uma relação com a palavra que podia ser deliciosa, solucionadora de conflitos, comunicante, catártica, que dá paz. Todas estas coisas são igualmente válidas. A escrita pode funcionar como apenas um instrumental – a escrita como modo de existir, a escrita como modo de pensamento, a escrita como um modo de ir. A felicidade do meu trabalho é poder ajudar pessoas a escrever e publicar, e fico vendo que o uso da linguagem é uma necessidade humana básica que muitas vezes não podemos exercer - não nos sentimos autorizados. Não precisa ser escritor para escrever, mas deixar que a escrita possa fazer parte do nosso cotidiano é um bem político e um direito de todos nós.

Bom, é assim que eu gostaria de abrir as inscrições para o ateliê de escrita. As aulas começam em fevereiro. Em 2017, vamos ter 4 turmas para quem quer escrever, independente dos comos e dos porquês.

Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Formada e mestranda na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)