A arte da concisão: Uma mulher, de Flávia Péret

26 de abril de 2017 - Laura Cohen

[Foto: Esther Azevedo]

Em uma conversa ao telefone com a minha amiga e parceira Flávia Péret a respeito de algum assunto burocrático, estava prestes a desligar quando ela disse com alegria na voz: “voltei a escrever, estou escrevendo um poema”.

Sempre que Flávia diz “eu voltei a escrever”, significa um encontro lá no café Intuição e Grão na rua Itajubá no meio da tarde em que, debruçadas sobre textos, trabalharemos. Flávia me lê, eu leio Flávia, há um tempo fazemos isso e tem sido um sucesso. No caso, Uma mulher foi um texto que encontrei já quase pronto, sem muitas dúvidas ou hesitações. Gerou, em mim, um estranhamento inicial pela forma e pelo procedimento empregado: eram simplesmente frases começadas com “uma mulher”, seguidas de uma adjetivação. Fiz referência aos poemas brilhantes da Angélica Freitas sobre diversas mulheres, e logo percebemos que aquilo era uma coisa diferente, mais cotidiana, mais melancólica, com menos humor. Um texto parecido com a Flávia e, por isso, original, mas que simultaneamente dialogava com o que muitas poetas andam fazendo.

O processo, de alguma forma, tornou-se viciante: ao mesmo tempo em que eu me identificava com algumas das mulheres daquela lista (“uma mulher intrometida”, “uma mulher presa a uma ideia fixa”, por exemplo) percebia que Flávia se colocava e não se colocava ali: ela é com certeza “uma mulher que faz listas” e “uma mulher que faz natação”, mas será que a autora do poema é “uma mulher que não tira a roupa na frente de qualquer pessoa”? Talvez por causa desse vício, o projeto continuou em um site genial que cria frases e mais frases do Uma mulher. Com dois cliques, podemos fazer infinitas combinações de mulheres: http://umamulher.org/ - alerta – é impossível parar.

Cada pessoa que escreve está aí para nos ensinar alguma coisa, e acredito que, com a Flávia, devemos aprender a arte da concisão. Ela diz: eu escrevo, mas escrevo coisas curtas. Aí está, não devemos pensar o curto como algo ruim. Não é justo considerar que escrever textos pequenos é a inabilidade de escrever um romance de quinhentas páginas, há muito além disso. Quem tem a escrita naturalmente breve é porque sabe resumir em pouco todo um universo de ideias. A concisão, na verdade, é uma inteligência que se adquire. Bebo do processo da Flávia me perguntando: “como posso dizer isso da forma mais simples e mais breve possível?” em vez de me desenvolver em verborragias que são naturalmente da minha poética. O próprio site de combinações do Uma mulher é um convite a isso, a criar o novo e o múltiplo com o mínimo.

Reparem que, em qualquer livro da Flávia, tanto o Dez poemas de amor e susto, quanto o A outra noite, em cada coisa que ela escreve, está ali apenas o necessário, nem uma palavrinha a mais – com um baque de olhos, entendemos, ela não precisa de muito para dizer coisas grandes. Assim, ela toca no universal. Acredito que o Uma mulher é uma radicalização desse necessário, é contar uma biografia em apenas uma linha. Pode-se, inclusive, fazer dele leitura biográfica: lemos o primeiro verso – “uma mulher que começou a escrever”, e em seguida o último, depois de uma longa jornada em múltiplas biografias: “uma mulher que um dia vai morrer”.

O poema Uma mulher joga com o lugar comum para criar a variedade. Ela assume uma coisa corriqueira, cria em cima e faz uma terceira via poética. Uma mulher como você poderia ser uma frase de publicidade de sabonete, mas está ali, deslocada no lugar da poesia, dizendo outra coisa mais difícil de decifrar, mas fácil de perceber. E falar de mulher cotidianamente é falar do lugar comum. Você com certeza já ouviu: mulher é assim mesmo. Mulher não consegue ser amiga de mulher. Mulher se arruma para mulher. Mulher gosta é de dinheiro, quem gosta de homem é viado. Festa boa tem que ter mais mulher do que homem (ou o contrário). Etc. Quando nasce menina: vai dar trabalho. Amadurece mais rápido. Gosta mais do pai do que da mãe. Etc. No processo, Flávia transforma grande problemas, questões existenciais, vergonhas, alegrias e cotidiano em poesia de poucas palavras.

O trabalho da Flávia – e de muitas mulheres autoras – é justamente colorir a representação da mulher na literatura, conversando com uma deficiência do passado. Estamos cansados de repetir que as mulheres são representadas dentro do cânone literário de forma pobre. Destaca-se o autor (normalmente homem, normalmente branco) que consegue representar uma mulher de forma minimamente significativa em narrativas e poemas. Leia Dostoiévski e você vai entender o que eu estou falando: mesmo que seja o gênio dos gênios russos, as mulheres são sempre um tanto decorativas, planas, muito parecidas umas com as outras, e as narrativas mais interessantes do autor são sobre homens.

Ao fim de um dos nossos encontros, Flávia disse: “pensei em ser um livrinho”, e não sabia se colocava três, quatro ou cinco versos por página. Decidiu por três. Reparem em mais uma coisa: Flávia Péret está lançando um livrinho por ano, e há no que ela já fez – sempre de forma independente, contando com o trabalho valioso amigos e alunos da Oi Kabum! – uma característica original e autoral. Logo veio o projeto gráfico brilhante da Valquíria Rabelo: duas cores de capa (rosa ou verde, brincando com a multiplicidade do livro), ficha catalográfica presa por um clipe, papel especial, grampo ômega, precioso como deve ser.

[Foto: Esther Azevedo]

O lançamento de Uma mulher vai ser no próximo sábado, dia 29/04, de 10h às 15h, na BANCA, Rua Gonçalves Dias, 789, em frente à Escola de Arquitetura.

Fiquem com um pedaço da entrevista com a Flávia em que ela fala de como foi fazer o Uma mulher:

Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Formada e mestranda na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)