Em comum: Sobre “nada acontece” de Carina S. Gonçalves.

27 de novembro de 2018 - Laura Cohen

Historinha: Carina levou para um conto para ler numa aula do ateliê de escrita. Falei: isso é um poema. Ela duvidou. No começo, havia o medo da poesia, uma crença comum a muitos de que a poesia era inacessível ou intocável. Pedi que ela colocasse aquele conto em versos. Carina versificou: de fato, era um poema. Carina me faz pensar, agora, sobre essa linha tênue entre o que é uma narrativa de fato e o que é um poema, ou sobre o que Aristóteles fala a respeito do que é poético: não diz respeito à forma do verso, mas ao conteúdo do que é versificado (um tratado de medicina, em versos, é um poema?).

Narrativa: para mim, uma boa característica de um livro de poemas é o diálogo que um poema pode estabelecer com os poemas seguintes e como todos se unem em torno de um tom único, que pode ser uma colorística, uma narrativa, um aspecto, uma melodia. Nada acontece se ergue em torno do nada, e o que Carina chama de nada se trata da observação cirúrgica da banalidade. Tudo isso se organiza em versos que ora são evocativos, ora são simplesmente narrativos. Reparem que alguns personagens reaparecem em vários poemas, alguns personagens são nossos velhos conhecidos. O próprio “nada acontece” é um refrão a ser repetido quando não se espera.

Referências: Carina cita John Cage, Jacques Tati, Stevie Wonder, Lydia Davis, diversos seriados da Netflix e filmes que são difíceis de encontrar; tudo se grafa em letra minúscula, sem hierarquias.

Humor: Não é a primeira vez que falo disso: o que Carina Gonçalves escreve possui um humor filosófico. O poema Cadeira consiste em apenas três linhas – “a cadeira é um objeto exemplar/tome esta cadeira/por exemplo”. Há, aqui, a troça da aula de filosofia, em que um professor fica horas discorrendo a respeito da materialidade da cadeira, enquanto Platão, em sua república, traz uma mesa do mundo das ideias. O humor que ri de si mesmo é um humor filosófico por excelência, esse humor deixa clara a nossa condição humana, que nos une através do erro, tocando no nosso universal. Uma piada inteligente é difícil de esquecer. Passa pelo cotidiano: poesia sem grandiloquência, próxima da vida real, do ônibus que não passa no horário e dos boletos a serem pagos. Você vai rir de quando ela fala da calça com um furo na bunda, mas você tem também a sua calça com um furo na bunda.

Comum: são personagens também a calça de algodão, o tapete, o almoço em família, o ônibus, os vira-latas, as mulheres, o spoiler, os buracos, um elefante. As coincidências e os objetos comuns criam um jogo de verdade e ficção que eu e você jogamos todos os dias: uma sala de espera em que todos os pais das três pacientes se chamam Vicente, a afirmação de que “não há nada/ mais fictício do que/nomes reais”.

Enigma: Tenho um gosto especial por coisas difíceis. Gosto muito do poema-enigma, Nada acontece possui alguns desses, que às vezes são pura evocação, pura paisagem ou a descrição do fim de um seriado norueguês, mas nenhuma dessas coisas é realmente o que parece ser. É justamente essa a diversão do enigma: a capacidade de ter várias faces. Carina às vezes é fácil, mas às vezes se torna enigmática e dificílima. “Veja se vocês entendem sobre o que é esse poema”, ela diz antes de ler sua nova produção, em voz alta, para nós. Às vezes só entendo algumas coisas depois que Carina explica. Às vezes entendo uma coisa fácil a respeito de um poema óbvio, dias depois, e ele se torna também enigma.

Fábula: Eu gostaria de, em uma próxima leitura, enumerar os bichos que aparecem nesse livro, qual fábula cada um desses bichos conta. O elefante presente no poema bagdad café é uma coisa que não é um elefante, o poema minhoca descreve o bicho, mas não necessariamente está falando do mundo animal. O vira-latas é exaltado em sua variedade, com suas qualidades comumente desprezadas, tanto que a mulher se torna também vira-latas. Assim como nas fábulas, cada bicho, com seus aspectos (a cigarra que virou formiga do poema tocata e fuga) apresenta uma série de coisas que na verdade são da natureza humana. Não sei bem se podemos falar que aqui há uma moral da história, como as de Esopo, mas acho que posso dizer que o que os poemas ironizam é justamente a incapacidade da vida em ter uma moral fixa; ao fim, por via das dúvidas, nada acontece.

Lançamento: nada acontece vem ao mundo no dia 01/12/2018, no Bar da Gabi (Rua Silvianópolis, 197, Santa Tereza, BH/MG).

Deixo vocês com dois poemas da Carina:


bagdad café

vasculho as fotografias das nossas últimas viagens


e não encontro vestígio do elefante que nos fez companhia


lembra-se dele no carro pelo retrovisor?


por vezes nos sorria nervoso


por outras olhava ausente pela janela,


perdido na paisagem seca



no avião, nosso elefante se sentou no meu colo.


te pedi que revezasse o peso comigo


e você disse que eu já estava na janelinha



na selfie que tiramos os três juntos ele não aparece.


deu espaço para o mar


- cortês da parte dele - sempre muito discreto.


e a foto ficou linda. todo mundo viu


o quanto nós nos amávamos. até você e eu



sempre havia um espaço entre a minha coxa e a sua.


entre o meu peito e o seu que ele preenchia liquidamente


com seu couro cinza. áspero mas eu gostava de acariciá-lo


para sentir lixar a palma das minhas mãos


(nem toda sensação agradável é boa)


-

reserva mineral

o mundo se acaba

e eu deitada

babando

de bruços

de pernas

de braços

esticados

de olhos

semiabertos

em cima do globo

à deriva

minha baba

desenha

uma ilha

-

Laura Cohen Rabelo publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014), o livreto de poemas Ferro (Leme, 2016) e o romance Canção sem palavras (Scriptum, 2017). Mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da UFMG, é idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde ministra cursos e ateliês de produção literária. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)