o tempo da escrita

11 de junho de 2018 - Laura Cohen

Laura Cohen Rabelo

1. Depois que lancei meu primeiro livro em 2012, fiz uma disciplina na faculdade de Letras em que lemos os nove romances de Machado de Assis em ordem cronológica. Machado lançou os seus primeiros romances em intervalos de dois anos: Ressurreição em 1872, A mão e a luva em 1874, Helena em 1876 e Iaiá Garcia em 1878. Dizem que esta é a primeira fase do autor e, desses, acho que gosto apenas de Iaiá Garcia. Machado ficou quatro anos sem lançar um romance quando publicou Memórias póstumas de Brás Cubas, livro moderno e inovador, narrado por um morto e no qual a ordem dos acontecimentos não é tão linear quanto nos romances anteriores. Marcos Rogério Cordeiro, meu professor nessa disciplina, nos mostrava que havia traços desse segundo Machado no primeiro. E que no segundo Machado, voltaria o primeiro: ou seja, a obra se constrói de forma orgânica. Mas percebi com o coração que algo havia mudado: se eu pudesse ressuscitar o Machado para fazer uma pergunta, seria essa: no tempo de quatro anos entre o romance número 4 e o romance número 5, o que aconteceu? O que você leu? O que você sonhou? Talvez alguém tenha a pergunta para essa resposta, um crítico, um biógrafo, ou o próprio Machado tenha escrito sobre isso. Se vocês souberem, por favor me digam. Por ora, tenho pistas: entre elas, a leitura de Sterne e Luciano de Samosata.

2.Então eu me propus o seguinte: produzir um romance a cada dois anos, espelhando o início da carreira do Machado. Ainda não havia entendido por que eu estava fazendo isso, mas acho que foi uma forma de por a minha escrita para frente como o projeto mais importante da minha vida e não o preterir. Algo nessa obrigação auto imposta me deu o bom resultado de sair de uma postura vitimista e lamentativa tão danosa a QUALQUER profissional e assumir uma postura proativa e madura. Em 2012 foi História da água, em 2014 foi Ainda, em 2016 não consegui terminar um romance e lancei o Ferro, livreto de poemas, e nos últimos dias de 2017 consegui lançar meu último romance, Canção sem palavras depois de enrolar bastante os meus editores. Por mais que nesses livros iniciais existam sinais plenos de imaturidade literária, não me arrependo de lançá-los quando os lancei. Qualquer pessoa na casa dos vinte anos que escreve tem o benefício de cometer erros através da ingenuidade, e acho que os defeitos dos meus dois primeiros romances vêm daí. Agora em 2018, depois de passar por vários problemas de saúde, suspendi meu acordo bienal com o tempo porque acredito que eu o tenho ao meu lado e estamos correndo em ritmos muito parecidos, eu e ele, e não é preciso mais ter tanta pressa!

3.Estabelecer um ritmo através do tempo fez com que eu levasse a escrita mais a sério. Entre os 16 e os 20, escrevi dois romances que foram para o lixo. Eram romances, com enredos, começo meio e fim, digitados no computador, com títulos, com dedicatórias. O segundo deles cheguei a enviar a editoras e concursos, mas no fim, desisti dos dois porque eram ruins. Nessa época, escrevia também contos, cheguei a publicar dois deles em antologias, um em 2007 e outro em 2009. Desisti desses livros, mas tenho muito respeito por eles: foram a minha maior escola de escrita. Foi ali, fazendo, gastando o tempo que eu deveria estar estudando matemática ou fonologia (“deveria” segundo o que se impõe sobre os jovens), foi ali que eu aprendi tanto, e através de amigos e professores que os leram, aprendi a receber críticas. Entretanto, essas histórias que escrevi nesses quatro anos, continuam a existir e a me assombrar. Agora em 2018, eu estava há nove anos sem escrever contos quando duas partes de um enredo dos meus primeiros romances voltaram na forma de dois contos, mais maduros, mais bem escritos, melhores. É a prova de que, na escrita, o tempo escolhe, não adianta controlá-lo, ele vai fazer e mudar e retornar e devemos estar a postos para o que acontecer.

4. Meu tempo de escrita se divide em dois espaços: no primeiro espaço é o mais longo, tomo notas, leio, vejo filmes, pesquiso, entrevisto pessoas (encher o saco dos outros é boa parte do meu processo), viajo, trabalho, ouço muita música e componho uma espécie de trilha sonora, literária e visual para o livro que está se compondo. Nesse tempo lento, que dura meses ou anos, em ritmo constante (festina lente, o dito latino: apressa-te devagar) e repleto de desistências provisórias. Eu estou sempre escrevendo várias coisas ao mesmo tempo, respeitando o tempo que cada coisa pede, se enjoo de uma coisa, pulo para a outra. O segundo espaço é mais curto: é quando eu me sento e digito a história. É quase um trabalho braçal de juntar pedaços de textos em um texto só. Normalmente faço isso quando tenho tempo, estou de férias, ou me livro de compromissos por duas semanas, um mês. Fico horas diante do computador, entregue e concentrada. Acho que essa experiência é o mais próximo do místico, do transcendental que eu consigo chegar. Entregue ao tempo, torno-me outra.

5. “Mas Laura, como você encontra tanto tempo para ler e escrever?!”. Essa pergunta possui duas respostas. Resposta 1: eu e meu marido dividimos igualmente tarefas domésticas. Ele cozinha, faz compras de supermercado, passa as próprias roupas, lava a louça. Quando fomos morar juntos, colocamos em uma tabelinha as coisas que cada um mais gostava de fazer: ele cozinha muito bem, mas odeia lavar roupa, coisa que faço com prazer. É um conselho que dou a todas as mulheres que vão morar com os companheiros, dividam tarefas igualmente. E a gente ainda é muito legal um com o outro: quando estou ocupadíssima, ele assume algumas das minhas tarefas, e quando ele está ocupadíssimo, eu assumo algumas das tarefas dele. Resposta 2: ler e escrever tem mais a ver com o ritmo do que com o tempo, tem mais a ver com adquirir uma disciplina agradável. Minha sugestão é que você comece com meia hora, uma hora por dia: estabelecer essa pequena meta ajuda a traçar o limite entre o tempo para os outros e o tempo para si. No começo, é aflitivo: parece que existe um vazio na gente antes de surgir a palavra, e por falta de hábito, a gente não engata nas leituras. Depois, cria-se um ritmo e escrita e leitura vão entrando a qualquer tempo, você começa a se levar a sério e passa a tomar mais notas quando a ideia vem, fazendo que o tempo se torne sua propriedade. Já vi muita gente saindo fora de relacionamentos e empregos abusivos – que controlam o seu tempo! – quando começam a escrever aqui nas Estratégias Narrativas.

6. Isso tudo para dizer que estarei, na próxima segunda-feira no Rio de Janeiro, acompanhada das ilustríssimas Ana Luiza Libânio, Taís Bravo e Estela Rosa, em uma mesa promovida pelas Mulheres que escrevem na Blooks botafogo sobre o tempo da escrita. Depois do bate-papo maneiro, vou lançar meu livro Canção sem palavras. Espero vocês lá!

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Laura Cohen Rabelo publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014), o livreto de poemas Ferro (Leme, 2016) e o romance Canção sem palavras (Scriptum, 2017). Mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da UFMG, é idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde ministra cursos e ateliês de produção literária. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)