O que li n° 1 (dezembro/2019)

02 de janeiro de 2020

Uma coisa que causa siricotico: entrar no ônibus e tem uma pessoa lendo um livro – independente do livro ou de quem lê, eu preciso saber o que a pessoa está lendo. Estou sempre perguntando aos meus amigos: “o que você está lendo?”. E gosto muito de falar do que estou lendo com pessoas que já leram, querem ou não querem ler e estão lendo os livros em questão. Antes, eu postava meus pequenos comentários literários nas redes sociais, mas fiquei sentindo que era um espaço limitado e chatinho, e que não dava para falar de outras leituras além dos livros. Daí resolvi fazer o O QUE LI, um post mensal aqui no blog das Estratégias Narrativas, com as leituras que fiz de livros, artigos, zines, contos, indicando as coisas que eu gostei, às vezes tendo a coragem de falar do que não gostei/abandonei e ignorando solenemente o que odiei.

Foram as leituras de dezembro de 2019:

ROMANCES/NOVELAS

ANDAR, Thomas Bernhard, ed. Brasileira.

O Bernhard é um dos meus autores favoritos, e Andar foi uma indicação da Olívia Gutierrez, que é uma andadora profissional e ótima curadora literária. O romance-novela se constrói num estilo muito parecido com o de O náufrago (mas magnum opus é magnum opus né, amores): idas e voltas narrativas, disse-que-disse, citações infinitas das falas e atos dos outros e muita ansiedade. Se há alguma narrativa nesse livro (pois penso que a força desse texto está na construção e no pensamento, e não nos acontecimentos), é a história de três amigos que caminham juntos conversando – ou conversam juntos caminhando – duas vezes por semana. Um desses três amigos não faz mais parte da caminhada porque enlouqueceu e está em um hospital psiquiátrico, de forma que o narrador passa a substituí-lo. É um livro sobre pensar e andar, sobre a repetição e, principalmente, sobre a loucura. Uma narrativa filosófica e angustiada, como gosta o nosso querido Bernhard, e uma narrativa bastante engraçada, dessas que fazem a gente rir de nós mesmos, da arrogância da humanidade, da razão.

Olha como começa bem: “Enquanto eu, antes de Karrer enlouquecer, só andava com Oehler na quarta-feira, agora, depois de Karrer enlouquecer, também ando com Oehler na segunda-feira”.

Mais um trechinho: “Andar com Karrer era uma sequência ininterrupta de atos de pensar, diz Oehler, que quase sempre elaborávamos lado a lado, por horas a fio, e que de repente acabavam dando em algum lugar, em algum ponto de parada ou em algum ponto de pensamento, mas na maioria das vezes num determinado lugar de parada e de pensamento”.

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LADY MACBETH DO DISTRITO DE MTZENSK, Nikolai Leskov, ed. 34. Tradução: Paulo Bezerra.

Eu nunca tinha lido-lido Leskov direito: só uns contos, e tinha achado sem graça. Foi por causa da polêmica ópera homônima de Shostakovich que resolvi ler esse livro, e fui COMPLETAMENTE ARREBATADA, assim, em caixa alta mesmo. Fiquei uns dois dias perdida em casa depois da leitura, tentando escrever, tentando pensar, tentando existir, mas completamente em êxtase e grata por existir uma coisa TÃO BOA no mundo. É uma novelinha de setenta páginas que devorei em algumas horas, mas também é um grande universo. Em resumo, é a história de uma entediada esposa de um comerciante em uma Rússia isolada e rural. Acho que falar mais que isso é dar spoiler, e o próprio nome Lady Macbeth no título já mostra a vocês o caminho sangrento que a narrativa toma. Fiquei impressionada como essa é uma narrativa proto-feminista, em que mostra uma mulher com valor de coisa enfrentando uma sociedade incapaz de repensar a si mesma e sempre exposta a eleger um bode expiatório. Um livro espantosamente atual.

O único trecho que posso mostrar aqui sem dar notícias da trama é o início, que não é menos genial que outros trechos que marquei: “De quando em quando aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles, por mais que o tempo tenha passado desde o nosso último encontro. E um desses tipos é Catierina Lvovna Izmáilova, mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual nossa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la ‘Lady Macbeth do distrito de Mtzensk'”.

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SEM SANGUE, Alessandro Baricco, ed. Cia das letras. Tradução: Rosa Freire D’Aguiar.

Além da bênção que Elena Ferrante nos deu com seus livros, ela nos abençoou fazendo crescer o interesse pela literatura italiana. Meu marido tinha lido um livro do Baricco e achou morno, mas depois de várias indicações seguidas, achei dois livros do autor expostos naquela sedutora mesinha de livros-a-vinte-reais na livraria Quixote. O Alencar me indicou um dos livros, um amigo indicou outro. Sem sangue é um livro sobre vingança e compreensão (dois temas que me interessam muito, pois tenho ascendente em escorpião e vênus em aquário). Simultaneamente violento e cheio de doçura, com suas oitenta páginas, conta-se a história de homens que aparecem em uma propriedade rural para se vingar do homem que a habita – ao que parece, o homem cometeu crimes de guerra, mas não sabemos exatamente quais crimes foram. O homem tem dois filhos pequenos, o menino pouco mais velho que a menina. E é por causa dos jovens personagem que a coisa se torna tensa: como a guerra deixa restos nas gerações seguintes, em nós? Como a narrativa não marca um espaço ou uma guerra, ela se espelha em nosso tempo: como o passado brasileiro provoca o que vivemos hoje? Outro trunfo: o manejo tempo. O livro consegue fazer anos se passarem em apenas algumas frases. E consegue fazer uns minutos durarem muitas palavras.

Olha o trechinho: “Tentou descobrir se era um menino ou um soldado, se era a milésima vez ou a primeira, e se havia um cérebro ligado àquela pistola ou apenas a cegueira de um instinto. Viu o cano da pistola tremer imperceptivelmente, como se desenhasse um minúsculo garrancho no ar”.

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QUADRINHOS

FUN HOME: UMA TRAGICOMÉDIA EM FAMÍLIA, Alison Bechdel, ed. Todavia. Tradução: André Conti.

Eu tenho certa dificuldade com a linguagem dos quadrinhos, talvez por ser uma pessoa que valoriza o texto acima da imagem. Pode ser o quadrinho mais lindo do mundo, mas se a narrativa é fraca, eu não vou gostar. O legal da Bechdel é que ela usa vários recursos para contar muito bem uma história: ela desenha, escreve, cita, dá referências, joga com o gênero do ensaio, criando a biografia de uma família focada na figura do pai. Quando leio uma história de família, que é um dos meus assuntos preferidos na literatura, sinto que é impossível não fazer uma comparação com nosso processo de crescimento, realizando uma reviravolta interna. Isso se potencializa aqui, porque a narrativa de Bechdel é muito sensível, franca, profunda e psicanalítica. Passando por memórias e citando suas leituras (de uma forma maravilhosa: ela desenha os livros que os personagens estão lendo e destaca trechos!), Fun Home é com certeza um dos quadrinhos mais consistentes que já li.

Sim, Alison, concordo com você: também suspeito muito da crítica literária.

CONTO

GORILAS, José Eduardo Gonçalves. Revista Olympio n. 2. Ed. Tlön/Miguilim. 2019.

A segunda edição da revista Olympio, apesar de não ter sido lançada ainda, já está disponível na Livraria da Rua. E está linda, com o design xamânico do Estudio Guyabo. Quando pego qualquer revista que tem literatura, ensaio e outras artes, confesso que vou direto para a literatura. Fico sentindo que é como separar as jujubas vermelhas do pacote e comê-las primeiro. No caso, vamos a essa jujuba gordinha, que é o conto do José Eduardo Gonçalves.

Gorilas é um conto curto e enigmático, bem ao modo dos contos do Kafka. Em primeira pessoa, observamos um narrador fazendo observações ambíguas sobre esses personagens, os gorilas. Se o Piglia diz que todo conto tem duas histórias e o importante é o que não é dito, penso que Gorilas é um desses contos que se aproximam da poesia não pela linguagem, mas por ter em oculto três, quatro, cinco histórias. Gorilas cria o infinito em um pequeno espaço. Muito bom, querido Zé! Dos seus contos que vêm surgindo, acho que esse é o melhor que li até agora.