O mito do escritor sem auxílio

09 de janeiro de 2020


A baguncinha da edição





Quando
estive em Caruaru/PE pelo Arte da Palavra no ano passado, uma das alunas me
disse mais ou menos isso no primeiro dia: “acho tão bonito uma pessoa que senta
e escreve um texto do começo ao fim, e sai tudo lindo. Queria aprender isso”. Brinquei
com ela: “é, eu também queria”. Era novamente o mito do Escritor Inspirado que
escreve o texto de cabo a rabo, sem crises, sem questionamentos, sem pausas,
sem reescritas mil e principalmente: sem ajuda. Existe aqui uma cilada
romântica, porque acho que a escrita é uma arte do refazer – talvez como o
teatro e a música, com seus múltiplos ensaios antes de uma apresentação, a
parte que fica invisível ao espectador.



Se escrever
é um ato solitário, penso que editar é um ato do coletivo. Há aquela regra da
Irmã Corita Kent “não tente criar e analisar ao mesmo tempo. São processos
diferentes”. Começando a oficina em Caruaru, percebi que os textos dos alunos
era tão legais que eu precisava apenas auxiliá-los a cortar e editar os
trabalhos uns dos outros. Reconstruí a oficina e fui dando toques; no fim,
espertíssimos, eles estavam dando opiniões de forma livre e carinhosa a
respeito dos textos alheios, editando, e uns meses depois alguns deles até
lançaram um livro. Claro que uns mais tímidos, outros mais delicados, outros
mais atirados. Para cada escritor, seu editor.



Também já
tive alunos que achavam que pedir ajuda para editar o texto era “trapacear”.
Como se o que saísse espontaneamente de si era o que valia, e depois de
editado, o texto não era mais tão seu. É um pensamento difícil porque, sim,
quando mais a gente escreve, mais a gente aprende sobre a escrita – mas esse
tipo de pensamento de que pedir ajuda é trapacear, isso coloca o foco sobre o
autor e tira o foco do texto, que é o único que tem que se sair bem nessa
história. Na verdade, sabemos até mesmo que a noção de autoria flutua muito ao
longo do tempo, e que o senso comum do nosso tempo ainda se foca no autor-gênio.
De novo trago a comparação: se no teatro temos a figura da direção, isso não
tira o mérito do trabalho de uma boa atuação. A mesma coisa se dá com uma boa
edição. Aliás, pela minha experiência, as melhores edições que fiz foi quando o
diálogo com o autor se deu de forma interessante para as duas partes.



Fayga
Ostrower escreve em seu livro Criatividade
e processos de criação: “Pensar na inspiração como instante aleatório que
venha a desencadear um processo criativo é uma noção romântica. Não há como a
inspiração ocorrer desvinculada de uma elaboração já em curso, de um
engajamento constante e total, embora talvez não consciente”. Assim como a
inspiração é uma elaboração em curso, também é a edição de um texto. O meu,
passa por muitas mãos e muitos olhos antes de ser publicado. Trocamos textos
impressos, e, num pacto de sinceridade, rabiscamos as páginas uns dos outros,
mandamos áudios gigantescos com insights sobre textos próprios e alheios.
Enviamos parágrafos difíceis por e-mail, pedindo soluções. Cortamos
lugares-comuns, conferimos tempos verbais, ajudamos na criação de personagens,
a arrematar narrativas, a conectar enredos e a mudar a ordem dos versos de um
poema. São estes os momentos mais bonitos da escrita, comparável à quando a gente
está escrevendo e, de repente, toda uma narrativa faz sentido, um verso sai facilmente,
uma imagem surge como mágica, apesar de, em silêncio, já estar ali sendo
gestada há um tempo. Enquanto isso, a edição se gera no barulho bom da troca.



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Quando voltei do Arte da Palavra, depois de dar seis oficinas pelo Brasil, de norte a sul, resolvi repensar os processos de edição e disso nasceu essa pequena oficina-piloto Cortar, reescrever, editar, que fala desses três momentos da escrita que são mais felizes e funcionais, para mim, quando coletivos. Se você quiser saber mais sobre a oficina, eis o link.