O cânone pessoal

17 de julho de 2014

1. Quando eu tinha uns dezessete anos, tive uma professora de literatura que copiava poemas no quadro. Acho que ela fazia isso simplesmente pelo prazer estético de copiar um poema e partilhar aquilo com a turma, o que tornava a aula sempre um acontecimento suculento. O poema daquele dia era Visita* de um poeta cearense chamado Diego Vinhas. Tinha saído em uma revista, e eu me lembro da professora falando da obscuridade do poema, que ele era de fato difícil de compreender, que ele acumulava muitas imagens que na verdade formavam uma imagem só. De fato, o poema ficou na minha cabeça por dias. Parecia que ele não era escrito em português, mas em uma língua estrangeira que me era familiar, mas não completamente traduzível. Procurei pelo poeta, achei o livro para vender na internet. Acho que foi o primeiro livro que comprei on-line, um livro fininho, pequeno, de capa de papelão, publicado pela 7Letras e custou uma mixaria: Primeiro as coisas morrem. O livro inteiro era de fato difícil de compreender e era poesia como eu nunca tinha lido. Um novo universo explosivo, diferente do Drummond ou do Bandeira que eu estava acostumada a ler. Aquele livrinho falava comigo até mesmo dizendo coisas incompreensíveis. De lá até hoje, esse livro é uma espécie de livro de cabeceira, um livro que eu leio sem parar e um livro que me diz sem parar. Ele é o discurso infinito da musa e se comporta certamente como uma espécie de palavra invocadora de musa, pois sempre que eu estou sem escrever e preciso escrever, basta ler dois ou três poemas que me volta o ânimo, a musa acorda, eu retorno às palavras com tranquilidade no coração.

2. Na minha primeira aula de teoria da literatura na faculdade, um professor que certamente marcou meu curso pela sua ousadia e pela sua simplicidade deu uma aula sobre o cânone. Acho que lemos a introdução de Por que ler os clássicos do Calvino, outro texto que me é muito caro. Nele, Calvino tenta definir o que faz de um clássico um clássico, o que o torna um desses livros que temos que ler, e os nossos pais leram e os nossos bisnetos provavelmente lerão. Um clássico nunca é o mesmo livro, ele se renova o tempo inteiro. Um clássico é sempre uma leitura fresca. Falando dos clássicos, meu professor usou um termo do qual eu gosto muito: cânone pessoal. Ou seja, aquele cânone que tanto faz se é canônico ao mundo ou não, ele é um livro de destaque na biblioteca de alguém e no universo de alguém. É o livro que desmancha de tanto ler. É o livro que gostaríamos de ter escrito, que consequentemente dialoga com o que desejamos escrever. Ao mesmo tempo, é o livro que desejamos superar. Quando escrevo um livro ou um texto, gosto de tomar emprestado do meu cânone pessoal: escrevendo História da água, um romance que possui quatro vozes, roubei em parte a forma de quatro narradores de William Faulkner, certo tom do próprio Faulkner para uma voz, certo tom arrogante da Teresa Veiga para outra, certo tom investigativo do Machado de Assis em outra voz, e busquei uma voz infantil para a quarta voz. No meu próximo livro que escrevi (se chama Ainda e vai ser publicado pelo selo Leme da Impressões de Minas em setembro) segui tentando imitar a Teresa Veiga, mas busquei também algo da racionalidade trágica do Borges e da brutalidade doce das cartas do Amos Oz. Dos nomes que eu falei, por certo a Tereza Veiga é a menos canonizada, mas citando-a sem parar, ela está colocada no alto do meu cânone pessoal. É a minha escritora preferida. Para mim, ninguém vivo alcança os pés dela. Quando leio os livros dela tenho aquela sensação de ah, é exatamente isso que eu quero fazer um dia. Os erros dela são os meus erros, os acertos são os meus acertos. A gente pode sentir isso com Dostoiévski e pode sentir isso com o autor independente que te vendeu uma revista numa feira de publicações de quintal.

3. Diego Vinhas também integra um posto alto meu cânone pessoal. Parece que autores dessa categoria específica nunca escreveram livros o bastante (a não ser que você ame um Balzac, por exemplo). Dos dezessete anos até o ano passado, procurei incansavelmente por poemas inéditos de Diego Vinhas, e procurei saber se ele tinha publicado de novo. Não tive notícias. Pensei que era um desses autores que param de escrever, e é uma espécie de tragédia pessoal quando isso acontece: quando o cânone pessoal da gente some, é quase como se a gente mesmo tivesse falhado em alguma instância. Até que houve o dia em que eu estava em casa com uma amiga, mostrando a ela o livrinho do Diego já cheio de marcas de dedo e umidade. Ela me chamou a atenção para um poema que era dedicado ao Eduardo Jorge, um amigo também cearense que tínhamos conhecido na faculdade de letras. Eu ainda não tinha feito a ligação: o Eduardo Jorge a quem se dedicava o poema só podia ser o mesmo Edu que eu conhecia. Perguntamos a ele sobre a dedicatória ele disse: sim, o Diego é meu grande amigo. Meses depois, ajudando o Edu a resolver um problema burocrático, conversei com o Diego Vinhas pela primeira vez por e-mail, primeiramente coisas chatas de procuração e aluguel do Edu. Em seguida contei a história do poema no quadro da escola. Perguntei a ele se ele não estava escrevendo, e ele disse que ia publicar um livro em breve, com muitos poemas que ele escreveu por vários anos. O livro, maior e mais grosso, de capa branca, chegou para mim pela mão do poeta, pelo correio. Chama-se Nenhum nome onde morar e veio com uma dedicatória que fala de silêncios e afetos. Apesar de eu estar economizando a leitura para não acabar rápido demais, temo que a capa branca já esteja ficando um pouco manchada pelo manuseio excessivo.

*aos bons curiosos:

VISITA

Diego Vinhas

da mesma matéria

de que são feitos

os domingos

– tédio e vapor em pedra-sabão –

compunha-se a espera

num gesto mais

branco.