Muda, de Karen Simões Correa, ou as solidões, as coragens e as partilhas.

23 de maio de 2016

[Imagem: Iara Musa // Texto: Laura Cohen]

Amanhã será lançado o livro Muda da poeta Karen Simões Corrêa. É uma alegria para mim ver esse livro sair dos arquivos dessa mulher tão especial – e tão rapidamente – já que recebi os primeiros textos dela que estavam no perigo da gaveta, em total estado bruto, há menos de dois anos. Precisamente: novembro de 2014. As gestações dos textos experimentam uma temporalidade muito diferente, e essa foi uma gestação de livro que precisa ser posto para fora: a poeta que tem a necessidade de partilhar com o outro o seu ofício, porque o que ela faz não é só dela, mas só existe quando partilhado pelo olho do outro.

A Karen, como eu, tem uma (ora sofrida, ora bela) compulsão pela escrita: a musa, essa figurinha da qual gosto muito, aparecia toda hora nos poemas e nas nossas conversas, como em um dos versos do poema de abertura: “de muda em musa”. Quem tem compulsão pela escrita adora encontrar quem tem compulsão pela escrita, quase como uma reunião de narcóticos anônimos ao contrário, em que a gente se ajuda a produzir mais. Foram quase dois anos de trabalho duro para a Karen, um trabalho duro que ainda não terminou nem vai terminar jamais (assim espero): o trabalho de descobrir o que é a poesia dela, o que ela deseja fazer com a poesia dela e o trabalho corajoso de mostrar a todos que desejarem ler o que ela faz.

A Karen foi uma das pessoas cujo texto eu preparei que mais me ensinou sobre dizer a mesma coisa de muitas maneiras diferentes. Os primeiros poemas, como os de muitos poetas, eram longos, pesados e excessivos, e aos poucos fomos vendo o que sobrava, o que era essencial, o que era de pertencimento. Aos poucos, a própria Karen lia o poema em voz alta (ela lê de maneira exemplar) e ia ela mesma tirando o que não fazia parte, numa autonomia aprendida com a literatura.

Tanto no processo quanto no resultado, acho que há três temas que habitam os poemas: a solidão, a coragem e a partilha. A solidão de estar ali com a outra, com o corpo no corpo da outra, e ainda sentir a coisa do amor rasgando sozinho, como no fim do poema i wish you love: “ainda recente na gente/ ainda transcrito na pele/ cada passo daquele dia /que parecia ser a dois/ mas foi de adeus” (p. 28). A coragem de ir e falar do que não se fala porque não quer ou não consegue, como em: “derramaram ódio pela borda do copo/ e a boca cuspiu direitos// atrás de um lenço fino/ de seda pura/ véus de falsas leis// (...) os leões estão guardados/ é a vez da hiena”, (p. 26). A partilha de dar ao outro o que se tem e o que se não tem, e justamente a ideia de se partilhar como se faz um poema. Este abaixo é um dos meus preferidos (p. 15) em que a gente pode perceber o próprio fazer da Karen se exibindo no poema:

quanto vale a palavra em libra

quanto pesa a pena

se tudo cabe

em quatro letras

o nada

a sobra é sempre resto

a pender o erro:

vomitar excessos

Este trabalho da Karen é bem um trabalho do não dizer ao dizer, um trabalho de mudança, e também aragem, plantio, espera, cuidado e colheita, um dos trabalhos mais essenciais da humanidade. O nome do livro, Muda, não vem por acaso: do silêncio, a ideia de cortar uma parte de uma planta maior e colocá-la na terra para dar à luz a algo novo.