Episódios literários

14 de abril de 2014

(Por Laura Cohen)

Estávamos na abertura de uma exposição. Eu conversava com alguém quando o Gui (meu grande amigo e participante do ateliê) chegou perto de mim com uma cara esquisita. Quando perguntei o que tinha acontecido, ele disse que estava metido numa conversa literária demais e teve que escapar. O conteúdo da conversa era simples: uma pessoa dizia à outra que o filho tinha passado na UFMG, e a outra pessoa dizia que tinha uma sobrinha que estava estudando Relações Internacionais lá. O tipo de conversa entre duas pessoas que não têm absolutamente nada para dizer uma a outra (ou talvez coisas demais, coisas profundas e proibidas) e se envolvem numa espécie de papo mole cujas entrelinhas desconhecidas provocam tensão.

Gui e eu criamos esse conceito – episódio literário – para caracterizar todos os acontecimentos da vida que na verdade se parecem com literatura. Certa sensação de estranhamento que se tem quando você se sente na verdade como o leitor de um livro, e não como uma pessoa real num espaço real vivendo um tempo real. Há certa sensação mimética, mas não é a arte fazendo de conta a realidade, mas a vida imitando a própria vida.

Por exemplo, outra situação que eu e ele vivemos juntos: estávamos caminhando na rua e ele viu um enorme e gordo cachorro (acho que era um buldogue, sou péssima para guardar raça de bicho) conduzido por um rapaz. Na verdade, era aquela velha cena em que o cachorro parecia conduzir o rapaz e não o contrário. Gui foi imediatamente bajular o cão, que babava por toda parte, e percebeu que conhecia o dono do cachorro. Se cumprimentaram com certa efusão. Era um menino jovem, que parecia ter algo mais que dezoito anos e os dois tinham feito juntos um semestre de um curso de publicidade. O rapaz de fato se parecia com um personagem e não com uma pessoa de verdade. Ele parecia ter saído de um livro ou de um filme, e qualquer descrição que eu fizer dele aqui vai parecer quase falsa – olhos azuis de grande pureza e de grande transparência, dois piercings, um de cada extremidade da boca, e o detalhe que mais me chamou a atenção: o cabelo dele estava ficando branco, apesar de ser tão explicitamente jovem.

Gui e o rapaz conversaram. Ele ainda estava no curso, e aquele cachorro não era seu, mas de um amigo que morava ali do lado. Ele estava passeando o cão para o amigo. Podia fazer carinho, sim, que ele não mordia. O rapaz fazia uma força descomunal para impedir o cão de beber a água suja que tinha empoçado na rua. Você tem que dar água para ele, o Gui sugeriu, e o rapaz disse que tinha acabado de dar água para ele, e que não adiantava, que ele queria era beber água suja. Gui e o rapaz trocaram mais algumas palavras e nos despedimos dele, caminhando pela rua ainda ouvindo os esforços do menino para guiar o cão.

Saindo dali, concordamos que aquele era de fato um episódio literário. Não só porque o rapaz se parecia com um personagem e a cena era um lugar comum, mas também porque invocava certas curiosidades: quem era o amigo dono do cão? Por que o rapaz caminhava com o cão para o amigo? Qual era a relação dos dois? Por que ele estava fazendo aquilo ali num dia de semana no meio da tarde, bem quando eu e Gui estávamos no meio de um trabalho muito apressado? Como era a vida daquela pessoa? Eu era uma espécie de leitora do livro da vida daquele rapaz, e eu não sabia várias partes daquela história. E é exatamente no momento em que deixamos de perguntar para começar a dar respostas imaginadas que deixamos de ser o leitor e passamos a ser o autor.

Há uns meses, conheci uma pessoa cuja história de vida era tão incrível que quase implorava para ser escrita, e de fato eu o fiz. Há eventos literários que são de fato inspirados na vida real, mas nesse caso, eu simplesmente criei um personagem que tinha vivido e feito exatamente as mesmas coisas que este meu amigo. Eu apenas tinha mudado o nome por respeito, até mesmo muitas das nossas conversas foram descaradamente copiadas para dentro do livro. Assim, o personagem e a situação surgiram, em sua origem, inspirado (ou assim totalmente copiado) na realidade. Porém, enquanto eu ia escrevendo a história dessa pessoa, ela ia mudando, ou seja, transformando-se num personagem de fato. A narrativa tornou-se, portanto, algo independente, e o personagem que eu tinha nomeado para diferenciar do meu amigo agora era uma pessoa totalmente diferente da pessoa que lhe deu origem.

Há outro jogo que aprecio muito: sentar-se em algum lugar (restaurante, praça e os meus preferidos: aeroporto e rodoviária) com uma vista para pessoas que vivem e interagem entre si, e tentar adivinhar ou atribuir para elas todo o cotidiano que de fato elas vivem. Todas suas tragédias, alegrias, todos os seus hábitos. É possível até mesmo criar diálogos. Enquanto termino esse texto, me pergunto se algum dia o menino do buldogue vai lê-lo. Não é por acaso que muitas editoras colocam em seus livros por segurança que os acontecimentos narrados ali não tem nada a ver com a realidade, e qualquer semelhança é mera coincidência.