EDITORES EXISTEM!

13 de fevereiro de 2017 - Laura Cohen

[Por Laura Cohen]

Certa vez a amiga editora Letícia Féres me mostrou um livro que ela tinha ajudado a editar. Fui caçar o nome dela na ficha técnica do livro, como sempre faço para me orgulhar dos queridos editores, e nada do nome dela estar ali. Aliás, a ficha técnica estava deserta de gente, devia ter um nome de uma pessoa de coordenação editorial, o próprio autor e talvez um designer. Reclamei daquilo, falei que estava errado, e Letícia me disse com tristeza: “Laura, eu não existo”. Pois bem, na maior parte do tempo, nós, leitores, nos esquecemos que por trás de todo livro existe um editor – ou pelo menos deveria existir. E acho que essa ideia de que o autor que escreve é um gênio que faz todo o trabalho sozinho prevalece acima da concepção de que, enquanto a escrita pode ser um lugar solitário, publicar sempre é um fazer coletivo.

O mito do gênio solitário faz muito mal a quem escreve. As pessoas que chegam ao ateliê às vezes nem escreveram direito nessa vida e vêm logo com uma exigência enorme para cima de si e do próprio texto, desejando que o texto já nasça genial, sem falhas, sem erros e sem problemas a serem posteriormente solucionados coletivamente. A gente acha que a escrita é só a solidão do escritório, que a gente deve ser 100% responsável pelo texto que escreve, mas na prática é bem diferente. Acho que o que acontece é o seguinte: quando vamos escrever, às vezes colocamos uma expectativa alta no próprio texto. E aí quando a gente falha é a maior frustração. Escrever é reescrever. A gente nunca consegue passar toda a ideia que pretendia na primeira versão do texto, e às vezes a primeira ideia não é tão boa assim, como sempre é o meu caso, talvez precise reconstruir o universo da narrativa de outra maneira. No fundo, é quase como se o livro a ser escrito tivesse vontade própria: planejamos coisas para ele, mas no fim é a narrativa que nos mostra o caminho. E o editor está aí para mostrar esse caminho com mais facilidade e rapidez.

Publiquei meu primeiro livro aos 22 anos, e uma das coisas que mais ouvi foi que eu não tinha vivência para escrever uma coisa daquelas e que eu era muito jovem para publicar um livro. Pois bem, fui logo colocada nesse lugar chatíssimo do prodígio, enquanto os nomes da minha editora e dos meus leitores estavam na página da ficha catalográfica e em uma nota de agradecimento ao fim da narrativa. Tenho 27 anos, comecei a escrever aos 7, escrevo diariamente desde os 11. Tive uma experiência de escrita inicial bem privilegiada: eu e minhas amigas escrevíamos em cadernos que circulavam entre nós. Não era diário, nem um caderno de perguntas (um beijo para os adolescentes dos anos 00’s), como rolava entre outros colegas, mas uma narrativa ficcional cheia de personagens e acontecimentos que se desenrolavam infinitamente. Fizemos isso por anos, antes que eu começasse a escrever minha narrativa sozinha, ainda contando com as leituras das amigas de ensino fundamental e médio.

Antes de publicar meu primeiro romance, escrevi aos 16 e aos 18 anos outros dois livrinhos relativamente longos (70, 100 páginas) que jamais serão publicados. Mas eles também foram minha escola de escrita e edição: alguns professores leram, fizeram seus comentários, amigos leram, deram suas opiniões positivas e negativas. Tive um blog, sempre bem comentado, que me rendeu meus primeiros amigos poetas. Ouvi com atenção tudo que diziam a respeito do meu texto e trabalhei muito. Aos vinte e um anos, conheci a Elza, minha editora, e recebi a minha primeira leitura séria e profunda. Muita coisa mudou desde então, e a cada livro que escrevo parece que vou conhecendo melhores leitores pré-publicação, como a Flávia Péret e a Constança Guimarães, professoras valiosas do Estratégias Narrativas. Alguns dias da minha semana são gastos por mim comentando ou ouvindo comentários dos outros, elaborados sempre com seriedade e profundidade. O trabalho é pesado, mas é o meu momento preferido na escrita de um livro: quando uma pessoa critica, está conectada a mim com generosidade, e a gente se apodera do texto. Não sou um gênio, não sou um prodígio, tenho a vontade de escrever somada a esse apoio privilegiado que faz com que eu consiga encontrar e amadurecer o meu texto, de forma que tive minhas oportunidades de publicação muito bem amparadas.

Meu romance em processo está sendo lido por um amigo poeta que, por sua vez, está escrevendo o seu primeiro romance. Eu li o romance dele, fiz os meus comentários, ele leu o meu romance, fez os comentários dele. Minha leitura foi feita no detalhe – na verdade, o texto dele estava era muito bom, mas tinha alguns problemas pequenos, que enfraqueciam a narrativa em geral: diálogos, algumas escolhas, a probabilidade de alguns acontecimentos, o conteúdo do pensamento e das experiências de certa personagem. Quando leu meu texto, primeiro ele falou que estava adorando: texto redondinho e narrativa envolvente. Mas quando terminou de ler, chegaram as críticas mais localizadas. Muito acertadamente, ele criticou que o discurso do meu personagem-narrador podia ser muito maniqueísta, que havia um personagem que eu precisava construir melhor, entre outras muitas coisas. No meio do áudio de whatsapp que ele gravou para mim, disse: “não fique brava comigo”. É a maior graça quando algum leitor ativo diz isso no meio do processo: ele estava me dando a ajuda que eu precisava e ainda se desculpando por isso. A crítica feita com rigor e atenção durante um processo é a maior generosidade que um escritor pode receber: a gente não exige das pessoas mais do que elas podem dar, então ao dizer aquilo, acho que ele acreditava que eu ia dar conta de resolver aquele pepino. Compartilhando conteúdos e histórias, meu amigo passou a fazer parte do meu texto enquanto eu mesma passei a fazer parte do texto dele.

Às vezes, quando as críticas mais profundas chegam, a gente se sente um fracasso total. Foi meu caso: poxa, tem quase quatro anos que escrevo essa história e ainda não consegui, errei a mão. O trabalho de escrever um romance parece estar longe do alcance do nosso intelecto, o que dá uma sensação de NUNCA VOU DAR CONTA DE TERMINAR ESSA COISA. No fim, depois de receber críticas e me sentir um fracasso total por cinco minutos, voltei ao trabalho energizada e quase que de imediato. Quando quero uma mudança grande em um texto, eu faço um ritual quase físico que me devolve certo conforto: abandono o caderno que eu estava usando, pego um caderno novo, recomeço a tomar notas. É como se eu me presenteasse com a possibilidade de começar de novo em um espaço limpo. Neste caderno novo, fiz uma lista de coisas a mudar no tal personagem problemático, que estava sendo retratado como malvado demais, e aquilo – junto de uma mão de outras coisas – não funcionava na narrativa.

Enfim, só entrego os meus escritos a pessoas que acredito que serão generosas comigo. Se for uma pessoa que provavelmente vai me destruir pelo prazer de me destruir, que não vai ter sensibilidade, nem me dou ao trabalho. Até o momento tive a intuição e a sorte de topar com leitoras maravilhosas e leitores maravilhosos. Acho que um dos meus principais objetivos com o Estratégias é justamente desconstruir essa ideia de gênio, que faz sofrer quem escreve e às vezes chega a assassinar alguns potenciais escritores que já não fazem por medo de errar. Aquela pessoa que edita, que identifica o erro, o excesso, tudo aquilo que afasta o texto de nossa autoria, tem o maravilhoso poder de transformar a solidão do escritório numa festa entre amigos.

foto: Bianca de Sá

Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Formada e mestranda na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)