Caminho por meu bairro como quem viaja

23 de outubro de 2018

[Juliana Ramos]

Em 1982 eu ainda levaria cinco anos pra nascer. Foi nesse ano que a escritora Carol Dunlop e seu companheiro, Julio Cortázar, concretizaram um plano que há muito fabulavam. Eles viajaram os 700 quilômetros de Paris a Marselha de um jeito totalmente não convencional: parando em todos os mais ou menos 70 parkings (espécies de áreas de descanso à beira das rodovias francesas) que havia entre as duas cidades, numa razão de dois por dia. As motivações pra isso talvez não fossem outras senão uma existência desimpedida pro jogo, uma abertura pra testar os limites de novos e inusitados pontos de vista.

As regras autoimpostas desse jogo expedicionário os induziram a experimentar a estrada de um outro modo. Um trajeto que levaria sete ou oito horas pra ser cumprido foi, por conta das normas, desdobrado ao longo de 30 dias. O lugar do trânsito se tornou, assim, o da permanência, e o lugar da velocidade, o da contemplação.

As percepções de ambos os escritores sobre a experiência estão registradas e recriadas em Autonautas da cosmopista, livro híbrido e encantador que leio hoje, em 2018, quando também estou às voltas com essas reflexões sobre a perspectiva dos nossos trajetos.

Acredito que o estranhamento, em maior ou menor grau, seja uma das condições mais provocadoras pra se fazer literatura e poesia. Dunlop e Cortázar, por exemplo, suscitaram o estranhamento (em si mesmos e nos outros) ao subverter a lógica de uma estrada por onde todos os dias milhares de pessoas passam. Passam, mas não ficam. Ainda que o caminho não lhes fosse propriamente cotidiano, era familiar. Porém, ao ser transitado de um outro modo, revelou aspectos que jamais teriam sido experienciados a 100 km/h.

Eu nunca fiz uma viagem como essa, e por muito tempo sempre transitei pelos mesmos lugares. Ainda assim, alguma coisa que não sei delimitar com clareza me faz estranhar, com uma relativa frequência, aquilo que faz parte justamente do cotidiano e da intimidade – aquilo que, por não ser exótico e alheio, a princípio não seria estranhável. Mais do que temas em comum, acredito que seja esse posicionamento que interligue, como um fio emaranhado, os textos do meu primeiro livro, No coração fosco da cidade.

Aproximadamente 27 dos meus 31 anos vivi em Osasco, na Grande São Paulo. Nessa cidade, me mudei apenas uma vez com minha família, quando muito criança, saindo da casa onde nasci para crescer em outra, muito próxima da primeira. Não sei precisar quando me veio a constatação mais consciente de que vivíamos numa periferia. Provavelmente foi quando, já adolescente, passei a perceber que meus trajetos cotidianos eram muito mais longos que os dos meus colegas de escola, o que se acentuou ainda mais na faculdade e nos meus empregos.

Embora me interessem as discussões sobre o que implica uma periferia urbana – a qual muitas vezes é definida pelo que nela está ausente –, os poemas de No coração fosco da cidade não exploram essas implicações. Nesses textos, estou mais centrada na percepção dos trajetos entre a periferia e o centro, sobretudo aqueles que se dão no transporte público. É um recorte, portanto. E é um recorte absolutamente calcado na minha experiência de caminhante, isto é, de pessoa que experimenta – e estranha – a cidade sobre seus próprios pés, e não de dentro de um carro.

Além dessa percepção estranhada dos trajetos cotidianos, outro eixo presente no livro é a potência do que os sentidos observadores podem revelar do espaço urbano, e com isso me refiro ao olhar, ao tato, à audição e ao olfato quando bem despertos. Mais uma vez, acredito que esses sentidos só sejam realmente observadores na medida em que o corpo se liberta, por um momento ínfimo que seja (e esses momentos de fato costumam ser ínfimos), da lógica da velocidade.

Esses textos nascem, portanto, do deslocamento espacial e pendular de todos os dias e de todas as pessoas como eu. Mas mais que isso: eles nascem do deslocamento do olhar quando nos lembramos de ver, do deslocamento dos sentidos quando nos lembramos de estar presentes – tarefas não tão óbvias numa metrópole.

Qualquer pessoa que precise fazer trajetos muito longos nas grandes aglomerações urbanas sabe, mesmo intuitivamente, que às vezes é preciso naturalizar uma situação não natural pra poder viver o cotidiano. Não é natural passar mais de três horas por dia dentro de um ônibus apinhado. Não é natural ser regido pela velocidade, pela falta de tempo – o qual Antonio Candido definiu tão belamente como o tecido da nossa vida. No entanto, quando temos de traçar itinerários anônimos entre a periferia e o centro, somos forçados (uma violência entre tantas outras) a fazer com que a distância, a falta de tempo, as grandes viagens façam tanta parte dos dias quanto o percurso do sol. E às vezes, cansados e descuidados, a crueza dos dias nos parece ainda mais real do que o percurso do sol.

É por isso que perceber e assumir seu próprio corpo numa grande cidade é um pequeno ato de resistência. É por isso que o tempo do caminhar contém, por si só, uma recusa ao aceleramento. Mesmo com o cansaço e as dores nas costas – alguns dos sinais pelos quais a natureza tenta se fazer notar –, é difícil se lembrar de ter um corpo na grande São Paulo. Não é novidade a ideia de que a cidade condiciona nossos modos de ser e de estar. Ela nos condiciona, por exemplo, quando nos faz subir as escadas pela esquerda, ou quando faz os motoristas dirigirem a 90 km/h nas marginais mesmo se eles não têm pressa.

Apoderar-se de si mesma, nessas condições, é um exercício de desautomatização que parte do estranhamento. Pra mim, esse exercício se dá pela palavra. Sem dúvidas é um modo um tanto solitário de se colocar contra um estado de coisas, mas ainda nutro a crença de que esse modo combativo – o do caminhar, o da lentidão, o do deslocamento poético – tenha a sua importância na medida em que outras pessoas também se reconhecem nele.

Hoje, tanto tempo após a feitura desses textos (escritos entre 2014 e 2016), penso que No coração fosco da cidade seja um livro que de certa forma reivindique a presença. Numa aglomeração urbana tão repleta de carências e ao mesmo tempo tão cheia e tão vazia de corpo, percebo que esses poemas, em seu conjunto, buscam menos pela ausência e mais pela presença, pelos corpos e pelas relações – concretas ou potenciais – que se estabelecem no eixo periferia-centro. Dunlop e Cortázar, já nos anos 1980, ensinavam que uma das formas de se acessar essa presença é pelo “outro caminho, que no entanto é o mesmo”.

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O livro No coração fosco da cidade, de Juliana Ramos, será lançado no dia 30 de outubro, 19h, na Tapera Taperá (Av. São Luis, 187, 2o Andar), São Paulo/SP. Junto, será lançado o livro Os patos da Flávia Péret, e vai ter um bate papo com a mediação de Paloma Vidal.

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Juliana Ramos nasceu em Osasco, na grande São Paulo, em 1987. No coração fosco da cidade, que reúne poemas escritos entre 2014 e 2016, é o seu primeiro livro.