A charada cotidiana - sobre A vida afetiva dos objetos, de Rosa Araújo.

31 de julho de 2017 - Laura Cohen

Foi em uma festa de natal do ateliê Artenova em 2007, onde fazíamos aulas de desenho com o professor Marcelino Peixoto. Faltavam poucos dias para que eu fizesse dezoito anos e eu já escrevia há bastante tempo, e escrevia diariamente, compulsivamente, ainda sem chegar a lugar algum, apesar de carregar já uma relação de necessidade com a escrita, uma relação cheia de conflito e vergonha. Em certo momento da festa, a Rosa, uma das minhas colegas – aquela mulher meio misteriosa, possuidora de um desenho invejável – pediu a palavra. Não me lembro se disse que era um jogo ou coisa parecida, mas queria mostrar a nós, colegas de desenho e pintura, algo que ela estava escrevendo.

“São objetos. Eu vou ler e vocês tentam adivinhar o que são”.

O primeiro texto que ela leu me causou um impacto tremendo: era lindo, tão bonito que eu me perdi nas palavras e não consegui me concentrar na charada que elas carregavam. Alguém gritou no fundo da sala a resposta da charada e eu me senti completamente perdida. O jogo seguiu: Rosa lia a definição, pensávamos um pouquinho e logo íamos dizendo: batom, xícara, absorvente, bandeja, tapete. Rosa observava as reações animadas apenas fazendo que sim ou que não com a cabeça, deixando um sorrisinho de canto e revelando os objetos que não conseguíamos adivinhar. Eu estava maravilhada com a situação, primeiro pelo fato dos textos serem tão preciosos, segundo porque a Rosa era uma mulher que escrevia e tinha a coragem e a bondade de parar ali a nossa festa de fim de ano para ler coisas que ela estava fazendo.

Rosa é artista plástica, mas a palavra sempre habitou o seu trabalho. Além de fazer uma infinidade de desenhos que possuem palavras como textura, algumas ações performáticas que ela fez em seu trabalho de pós-graduação consistiam unicamente de textos. Em 2014 ela fez uma exposição incrível (Quando a água preenche um instante) em que cobriu o chão do Artenova de aquarelas azuis sobre papel, azulejos que ela pintou exaustivamente por anos, e apresentou, sobre uma mesa, todo um aparelho de louça e talheres cobertos por pequenas aquarelas que representavam água. Depois dessa exposição, entretanto, parou de pintar e desenhar e se jogou na palavra. Nessa época, eu já tinha aberto os meus ateliês de escrita, estava no segundo ano do trabalho e ela me procurou, dizendo que queria ajuda com os textos que estava produzindo. Fiquei lisonjeada, e logo pensei naqueles textos que ela havia lido no natal de 2007. Onde estão? Na minha cabeça já eram um livro pronto que ela deveria publicar logo.

Diante da minha insistência quase infantil, Rosa resgatou a pasta onde tinha guardado as definições dos objetos e eu finalmente pude retornar a eles. Aos poucos, ela foi recebendo minha leitura (e das colegas do ateliê de escrita) e reescrevendo os textos, até o momento em que percebemos ali haver uma publicação pronta. Rosa queria, entretanto, manter o espírito de charada que havíamos experimentado no ateliê de desenho, de forma que os objetos foram numerados por extenso, um, dois, três, quatro, cinco... até o setenta e oito, havendo, ao fim do livro, uma lista com as respostas das “charadas”. Um dos desenhos de Rosa Araújo foi usado para ilustrar a capa: uma mesa infinita, com jogos de xícaras, bules, leiteiras, molheiras, pratos, em um chá desordenado, e as letras e a parte interior da quarta capa de um azul que Rosa sempre usa em seus trabalhos plásticos. De alguma forma, acredito que este é um livro onde as imagens se constroem através das palavras – Rosa realiza aqui um desenho de objeto cobrindo com um véu de significados ocultos as frases que constituem cada definição.

A vida afetiva dos objetos carrega os três aspectos que me agradam muitíssimo na literatura: o jogo, o cotidiano e a lista. O livro forma, sim, um jogo de adivinhação a respeito de um cotidiano teoricamente banal, mas assume um forte aspecto filosófico e humano. Por exemplo, o poema de número vinte e dois: “Objeto usado para desenhar pontes sobre o chão. É um diplomata, pois nos delega uma importância que nem sempre temos, além de acariciar os nossos pés”. O objeto descrito (adivinhou o que é?) adquire uma personalidade e profissão humana através da função que exerce. Mas, para mim, é a poeta Eliza Caetano que resolve a charada final: na orelha do livro, ela escreve que não se trata de uma adivinhação simples, mas uma investigação do mundo dos objetos, uma investigação diante do estranhamento que é o mundo e a tentativa de classificá-lo não de forma pragmática, mas em um registro poético. Em forma de lista, o livro torna-se um inventário íntimo das coisas humanas e simples, mas que para nós possuem afeto e complexidade. Além de tudo, a leitura viciante pode ser experimentada em leitura silenciosa, mas tente levar o livro a uma pequena reunião de amigos e façam uma leitura em voz alta, tentando adivinhar quais são os objetos.

Pois bem, quase dez anos depois, livro impresso, corri na editora para pegar um exemplar e ver como ficou, como eu sempre faço. Peguei o livrinho nas mãos e passando as páginas de modo pragmático, vi que ela tinha dedicado o livro para mim. Ali, minha memória retornou uma década, aquela moça de dezessete, quase dezoito anos, sentada na escadinha do ateliê de desenho, ouvindo os poemas de Rosa, poemas despretensiosos, poemas quase naturais. Em um livro, Rosa encerrou para mim o momento em que mais me senti unida a ela e ao seu fazer. Se hoje sou escritora, querida Rosa, também é por sua causa, e por isso te agradeço muito.

E para satisfazer a curiosidade de todo mundo, alguns dos meus preferidos do livro A vida afetiva dos objetos. Não vou dar resposta para as charadas: nos vemos dia 10/08, na livraria Usina das Letras do Cine Belas Artes a partir das 19h30. Aí sim vocês podem ver as respostas. Por enquanto, tentem adivinhar:

Três

Objeto situado no andar acima da classificação dos objetos celebrativos. Encerra-se no seu ventre vazio e transparente o desenho da sede. É usada como utensílio cheio de adjetivos que denotam esperança.

Quarenta e três

Objeto tão delicado quanto a nossa intimidade. Criado para ser um órgão suplementar, cheio de poros como a pele, macio como nossas carnes e oculto como os próprios órgãos.

Setenta e um

Objeto moderno permitido às mulheres apenas quando a moral diferenciou o ato de andar a cavalo do ato de parir.

Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Mestre em estudos literários na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)